6/11/2011

A LITERATURA E O DIREITO A MORTE




[a l g u n s - f r a g m e n t o s]


Admitamos que a literatura comece no mento em que a literatura se torne uma questão. Essa questão não se confunde com as dúvidas e os escrúpulos de escritor. Se acontece de este se interrogar ao escrever, isso lhe diz respeito; que ele seja absorvido pelo que escreve e indiferente à possibilidade de escrevê-lo, mesmo que não pense em nada, é seu direito, sua felicidade. Mas resta o seguinte: uma vez  a página escrita, está presente nessa página a pergunta que, talvez sem que ele saiba, o escritor não cessou de se fazer em quanto escrevia: e agora, no meio da obra, esperando a abordagem de um leitor de qualquer leitor, profundo ou vão repousa silenciosamente a mesma indagação, endereçada à linguagem, por trás do homem que escreve e lê, pela linguagem que se torna literatura.

[---]

Podemos considerar uma presunção esse cuidado que a literatura tem consigo mesma. Esse cuidado fala inutilmente à literatura, do seu nada, da sua pouca seriedade, da sua má-fé; esse é justamente o abuso que lhe censuram. Ela se dá como importante, tomando-se por objeto de dúvida. Confirma-se, depreciando-se. Busca-se: é mais do que deve. Pois ela talvez seja essas coisas que merecem ser encontradas, mas nunca procuradas.  

[---]

A literatura não tem talvez o direito de se considerar ilegítima. Mas  a questão que ela encerra não concerne, propriamente dito, o seu valor ou o seu direito. Se é tão difícil descobrir o sentido dessa questão, é porque essa tende a se transformar em um processo da arte, de seus poderes e de seus fins. A literatura se edifica sobre suas ruínas: esse paradoxo é para nós um lugar-comum. Mas ainda deveríamos saber se esse questionamento sobre a arte, que representa a parte mais ilustre da arte nesses trinta anos, não supõe o deslizamento, o deslocamento de uma força de trabalho no segredo das obras e recusando-se à vir a luz do dia, trabalho originalmente muito distinto de qualquer depreciação da atividade ou Coisa Literária.


[---] 

Observemos que a literatura, como negação dela própria, nunca significou a simples denuncia da arte ou do artista como mistificação e engodo. Que a literatura seja ilegítima, que exista nela um fundo de impostura, sim, certamente. Mas alguns descobriram mais: a literatura não é apenas ilegítima, mas também nula, essa nulidade constitui talvez uma força extraordinária, maravilhosa, a condição de ser isolada em estado puro. Fazer com que a literatura se torne a revelação desse dentro vazio, que inteira se abra à sua parte de nada, que realize sua própria irrealidade, eis uma tarefa desenvolvida pelo surrealismo, de tal maneira, que exato reconhecer nele um poderoso movimento negativo ; mas também é correto atribuir-lhe a maior ambição criadora, pois, assim que a literatura coincide por um instante com nada, imediatamente ela é tudo, o tudo como nunca existiu: grande prodígio.

[---]

Não se trata de maltratar a literatura, mas de procurar compreendê-la e ver por que só conseguimos a compreendemos a depreciando-a. Constatamos com surpresa que a pergunta: “O que é a literatura?. Só recebeu respostas insignificantes. Mas existe algo mais estranho: na forma dessa pergunta, algo parece retirara-lhe toda seriedade. Perguntar: O que é poesia? O que é arte? Ou mesmo: O que é romance? Podemos fazê-lo e foi feito. Mas a literatura, que é poema e romance, parece ser elemento do vazio, presente em todas essas coisas graves, e sobre todas as reflexões, com sua própria gravidade, não se pode voltar sem perder sua seriedade. Se a reflexão imponente se aproxima da literatura, essa se torna uma força cáustica, capaz de destruir o que nela e na reflexão se poderia impor. Se a reflexão se afasta, então a literatura volta a ser, com efeito, algo importante, essencial, mais importante do que a filosofia, a religião e a vida do mundo que ela abarca.                

[---]

MAURICE BLANCHOT





2 comentários:

  1. Muito bom, Blanchot mil vezes Blanchot, pois os grandes desprezadores são os maiores adoradores. E por aí que a literatura fluí.

    ResponderExcluir
  2. Blanchot descobre o que a literatura é. Vazio, abismo, mergulho, (des) construção. É o cara.

    ResponderExcluir