5/09/2011

PENSAR / MIGRAR: filosofia da migração em Vilém Flusser


Por Charles Feitosa



1) Introdução

O objetivo desse texto é expor as principais diretrizes do projeto de uma filosofia da migração por Vilém Flusser.  Embora o problema da migração não pareça ter estatuto filosófico, veremos que trata-se aí de uma das questões mais importantes da filosofia. Flusser era ele mesmo um migrante, suas reflexões sobre os movimentos migratórios eram para ele ao mesmo tempo filosóficas e autobiográficas. O presente ensaio insere-se, portanto, na pesquisa sobre "Memória, Linguagem e Identidade nas Autobiografias Filosóficas", que desenvolvo junto ao Mestrado em Memória Social e Documento (MMSD) da UNIRIO.

2) Quem foi Vilém Flusser?

Surpreendentemente poucos no Brasil conhecem esse filósofo de origem tcheca que morou e ensinou durante 30 anos em São Paulo e tem uma vasta obra, traduzida do português para o inglês, francês e alemão. Flusser nasceu em 12 de maio de 1920 em Praga, filho de pais judeus. Cresceu falando alemão e tcheco como Kafka. Estudou filosofia na universidade de Praga a partir de 1939, mas teve que interromper os estudos com a invasão de Hitler à república tcheca. Emigrou então para Londres e depois para o Brasil. Sua família foi toda dizimada em campos de concentração.
No Brasil, durante a década de 40 realizou diversos trabalhos para sobreviver; continuou seus estudos de filosofia de maneira informal e autodidata. Nos anos 50 aparecem as primeiras publicações em jornais e revistas sobre problemas de filosofia da linguagem e fenomenologia do cotidiano. Em 1959 é convidado a assumir uma cadeira de filosofia da ciência na USP. Em 1963 lança seu primeiro livro, intitulado "Língua e Realidade". De 1965 a 1972 divide a tarefa de lecionar filosofia na faculdade humanística do ITA de São José dos Campos com a publicação de diversos artigos em jornais e revistas, além de palestras como professor visitante em Yale, Barcelona e Berlin. Em 1972 começa a enfrentar problemas com o regime militar e decide emigrar novamente, dessa vez para a França. A partir de 1975 torna-se professor da escola nacional de fotografia de Aix-en-Provence, onde prosseguirá suas pesquisas sobre novas mídias e cultura. No dia 27 de novembro de 1991, um dia após uma conferência sobre mudança de paradigmas da ciência no Instituto Goethe de Praga, morre em um acidente automobilístico. Suas principais publicações são "História do Diabo" (1965), "A Força do Cotidiano" (1973), "Por uma Filosofia da Fotografia" (1983), "Gestos" (1991). Pode-se dizer que era um filósofo que levava a sério a superfície e as aparências. Costumava citar Goethe como lema de seu trabalho: não procurar nada atrás dos fenômenos, eles mesmos são o ensinamento.

3) Filosofia da Migração

É sintomático que a maioria dos textos, anotações e projetos de livros que tenham como tema a migração tenham sido escritos em meados da década de 70, depois do banimento de Flusser do Brasil por causa ditadura militar. A expulsão da segunda pátria, a pátria escolhida parece ter causado uma frustração maior do que a expulsão da pátria original, a república tcheca.
Pela própria biografia de Flusser sabemos que ele viveu uma experiência radical de desenraizamento, de falta de chão (essa expressão serve de título à sua autobiografia "Bodenlos", publicada em (1999). A sensação de falta de lar é descrita com precisão em uma de suas conferências:

Nasci em Praga e meus antepassados parecem ter morado por mais de mil anos na cidade dourada. Eu sou judeu e a frase ‘no ano que vem em Jerusalém’ me acompanha desde a infância’. Estive envolvido durante três décadas na tentativa de construir uma cultura brasileira a partir da mistura entre elementos europeus ocidentais e orientais, africanos, asiáticos e indianos. Moro em uma aldeia na Provence, fui incorporado visceralmente nessa comunidade atemporal. Fui educado pela cultura alemã e participo dela já há muitos anos. Enfim, não tenho pátria, porque muitos lares ou pátrias se acumulam em mim. Isso se exterioriza diariamente no meu trabalho. Sinto-me em casa em quatro línguas e sou obrigado a retraduzir tudo que escrevo nessas quatro línguas [1] .

Ao pensar a questão da migração Flusser está asssumindo o caráter autobiográfico de sua filosofia. Sua "filosofia da migração" nunca foi sistematizada, mas apresenta algumas teses instigantes. Em primeiro lugar (A), Flusser afirma que a dificuldade dos sedentários em lidar com os arrivistas é sintoma de uma doença estética. Em segundo lugar (B), o autor defende a posição de que o exílio pode ser um fenômeno positivo. Finalmente (C), para Flusser migrar é uma atitude de revolta contra as condições estabelecidas e uma forma de engajamento para promover transformações.

A) Genealogia estética do amor pela pátria

Flusser desloca o problema da migração do âmbito sócio-econômico para o ontológico ao estabelecer as bases do patriotismo dentro de uma lógica estética. Segundo o autor, toda casa é para seu morador algo bonito, pois ele está acostumado com ela, sente-se seguro, tranquilizado, a casa não muda, permanece. Já o que vem de fora é inabitual, estranho, incômodo. Tudo que parece familiar reflete nossa própria face. O confortável parece bonito; já aquilo que é diferente, inusual, causa desconforto, parece feio.
A lógica estética torna tudo belo quando incorporado à casa, mas também torna tudo feio, quando algo é expelido, banido ou expulso. A tese de Flusser é a de que "o patriotismo é antes de tudo um sintoma de uma doença estética" (op.cit.,p.29). Sentir apenas o lar como bonito, enraizar-se na pátria original e manter-se fechado para o feio que chega e que poderia ser transformado em belo...
O imigrante é para o enraizado alguém ameaçador, pois expõe a fragilidade do lar sagrado. O arrivista é alguém que já está no lugar, mas não inteiramente, é um aspirante à residência, taxado de recém-chegado pelos locais, para que estes possam se sentir mais seguros na sua moradia. Com a chegada dos migrantes surge um polêmico diálogo que tanto poder gerar um pogrom ou um enriquecimento da pátria, ou ainda uma libertação do enraizado de suas raízes. Mas será possível desenraizar-se?

B) Exílio como experiência libertária

O enraizamento do homem é um conceito ideológico, pois na prática ninguém é enraizado. Falar de raízes faz o homem parecer um legume: fixado na terra. Outra tese fundamental de Flusser diz que para ser homem é preciso assumir o desenraizamento. O exílio, que é a expulsão violenta de pessoas de suas condições originais, pode vir a ser uma oportunidade criativa, um bom método, para que as pessoas se tornem seres humanos no sentido mais pleno da palavra.
O argumento de Flusser desenvolve-se da seguinte maneira: quem é expulso é retirado do seu lugar habital. O hábito é como uma capa ou véu que cobre as questões, as relações, os estados de coisas. No âmbito conhecido e familiar do morador, do sedentário, do nativo, somente as alterações são perceptíveis e informativas, mas não o que permanece (pois parece redundante). No exílio tudo é inabitual, o exílio é um oceano de informações caóticas. Mas a condição de não morador impede que essas informações possam ser trabalhadas como mensagens cheias de sentido, é preciso processar esses dados. Quem não conseguir, será como que engolido no exílio, é questão de sobrevivência. Processar os dados caóticos é inventar, é preciso ser criativo quando se foi expulso de sua pátria. Trata-se aí de uma apropriação positiva do banimento contra o mero "compadecer-se" do exilado. Quem simplesmente ajuda o expulso quer reintegrá-lo no ordinário e habitual. Trata-se da mesma lógica que promove o exílio, ainda que inversamente: os expulsos e banidos eram fatores de perturbação da ordem e foram expulsos para que a pátria pudesse se tornar ainda mais comum e habitual do que antes.
O hábito é como um cobertor de algodão, cobre todos os cantos e abafa os sons, é anestésico, esconde inforamacões. O hábito faz tudo ficar bonito e tranqüilo. Vimos que a boniteza do lar habitual é a fonte do amor à pátria. Tira-se o cobertor e tudo fica monstruoso, inabitual, "entsetzlich" (deslocado). No exílio, onde o cobertor do hábito foi retirado, passamos a perceber de forma mais apurada o mundo e tornamos-nos revolucionários, mesmo que apenas para poder morar no novo lugar.
Para o exilado toda terra nova é América, para quem já mora há muito no mesmo lugar todo território é antigo, mesmo que seja na América. Para Flusser  somente o migrante é verdadeiramente americano, mesmo quando ele migra para outros lugares, antigos ou sagrados, a atmosfera americana está em todo lugar onde ele se sentir sem raízes:

É indiferente para onde se é banido. Para os exilados mesmos todo exílio é terra nova. Mas para moradores originais toda terra tem um outro caráter, a saber, dos hábitos, que cobrem as verdades. Existem países que por hábito se consideram novas (por exemplo, a América, ou a terra de nossos netos, ou a terra dos aparelhos tecnológicos). E existem terras que por hábito são antigas, se tomam como sagradas (por exemplo Jerusalém, ou a terra dos textos lineares, ou dos valores burgueses) (op.cit., p.106).

O exilado toma sempre a terra com um novo caráter, obrigando os que se acham novos a se descobrir como antigos e os antigos a se descobrir como animais habituais. Os exilados são desenraizados que procuram desenraizar tudo a sua volta, para poder lançar novas raízes. Será preciso ter consciência desse processo vegetal, que o homem não é uma árvore ou legume, que não precisar fincar raízes fixas no solo.
Dá trabalho não fincar raízes, a dignidade humana está na falta de raízes e na liberdade de permanecer estrangeiro, diferente dos outros, um outro dos outros"a patria do apátrida é o outro". A hipótese flusseriana vale tanto para os "boat people", palestinos, afegãos ou curdos, mas também para os idosos, aqueles que sentem expulsos do mundo de suas crianças e netos; ou ainda para os humanistas, que sentem na pele um certo exílio em relação ao mundo tecnológico. Estamos em uma época de banimentos, é tarefa do pensamento reavaliar esses fenômenos culturais positivamente também.

C) Migração como Revolta e Engajamento

"Nós migrantes, somos as janelas através do qual os nativos podem ver o mundo", diz Flusser em uma de suas entrevistas. O homem é condicionado por coisas naturais ou culturais, pode ser explicado até certo ponto por esse condicionamento, mas o homem não é totalmente condicionado, existe sempre um lugar sem coisas naturais ou culturais, no qual ele é livre. Esse lugar pode ser chamado de ironia (figura de retórica de dizer o contrário do que se entende, tal como na ironia socrática que consistia em simular uma certa ignorância para demonstrar a fragilidade do discurso do interlocutor, enfim, um discurso estratégico contra o poder). O movimento que eleva o homem à ironia não pode ser explicado ou previsto pelas suas condições naturais ou culturais, mas exatamente por ser contra ou apesar delas. O movimento do homem para a ironia pode ser chamado de revolta, o movimento para fora da ironia pode ser chamado de engajamento (uma volta às condições da situação, com o fim de alterá-las). Os dois movimentos compõem a liberdade humana. O homem é livre porque pode se revoltar contra suas condições e alterá-las. A possibilidade da ironia e do engajamento diferencia o homem das coisas ao seu redor... É a sua dignidade, qualquer explicação do homem apenas pelas condições naturais ou culturais é uma des-dignificação do homem...
Flusser chama de "emigração" o movimento da revolta na ironia e de "imigração" o movimento da ironia para o engajamento. Minha revolta me leva a sair do meu lugar, a migrar, mas esse migrar também é uma fuga. Qual a diferença entre migrar e fugir?  O homem é livre quando pode fugir? Quando eu abando um condicionamento para readentrar em outro condicionamento num mesmo nível, eu sou um apenas refugiado. Eu não me revoltei, nem me engagei, apenas me deixei levar... Trata-se de um movimento previsível e por isso mesmo sem dignidade, sem liberdade. Na prática toda emigração tem algo de fuga e toda imigração tem algo de salvação. Qual será então a diferença mais radical?

O refugiado está preso, positiva e negativamente, nas condições que ele abandonou. Ele as carrega consigo em seu caminho, na forma de uma mistura de amor e ressentimento. O emigrante ao contrário, distanciou-se de suas condições, na sua revolta ele seleciona o que lhe interessa e o que deve eliminar. O refugiado é alguém que está fechado de novo, não tem nada para dar, nem para tomar. O emigrante se mantém aberto para a assimilação das novas condições e para atuar de maneira modificante (op.cit., p.39).

As categorias da "filosofia da migração" de Flusser são ainda vagas e nebulososas. A fronteira entre a fuga e a autêntica emigração nunca ficará suficientemente clara. Mas ela tenderá a tentar transmutar o sofrimento de quem é forçado a se exilar em uma dor de parto, a interpretar a migração como uma experiência radical de liberdade, cheio de mensagens para o futuro.  

IV.  Filosofia e Migração

O sedentário tem propriedade, o viajante experimenta. O sedentário mora no habito, o viajante corre perigo. O sedentário vive astronomicamente, o nômade vive metereologicamente. No século XXI não é mais a propriedade, mas a informação que garante poder. Não é mais a casa que se torna funcional, mas a comunicação. Começamos todos a nos nomadizar na era da informação. Vivemos numa época em que fomos banidos da "realidade", não temos mais certeza se o que vemos é verdadeiro ou não. Depende de nós decidir se esse desenraizamento do real será vivenciado como uma exílio forçado ou como uma experimentação que permite novas e criativas formas de existência. A migração é um tema filosófico por excelência porque fazer filosofia é uma espécie de migração interior. Filosofar é se exilar na própria casa, na cidade, no mundo, em si mesmo, elevando a cobertura do habitual que repousa sobre as coisas.

Charles Feitosa é professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradução em Artes Cênicas da UNIRIO, com pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Potsdam-Alemanha e doutorado em Filosofia na Albert Ludwigs Universität Freiburg, no mesmo país. Além disso, é vice-coordenador de graduação em Filosofia da UNIRIO. Sua experiência na área tem ênfase em Estética moderna e contemporânea, onde atua principalmente com arte, memória, finitude, corpo, cultura pop e dança.




Nenhum comentário:

Postar um comentário