6/02/2013

O FRAGMENTO É INDESTRUTÍVEL │Jean Luc Nancy




Giselda Leirner


Henri Michaux



Giselda Leirner






 *

Ele não é um objeto, não é um gênero, não faz obra. (A vontade fragmentária de Friedrich Schlegel é a vontade mesma da Obra, não voltemos a isso. Mas aquilo que Blanchot nomeia de a exigência fragmentária excede a obra, porque isso excede a vontade.)

*

Fragmento: o texto é frágil. Ele nada mais é que isso [ça]. Isso quebra, isso não quebra. No mesmo lugar. Onde? Em alguma parte, sempre em alguma parte, uma parte inassinalável, incalculável.


*

Está-se, portanto, errado em escrever em fragmentos sobre o fragmento (isso vale também para Blanchot). Mas que fazer de diferente? Escrever sobre uma coisa totalmente outra – ou sobre nada – e deixar se fragmentar.


*

 « Isso vale também para Blanchot »: no entanto, foi a publicação de A Escrita do desastre, em julho de 1980, na nrf [Nouvelle revue française], que veio interromper, aqui, a redação de um texto totalmente outro, e aquilo que eu poderia agora, tendo-o abandonado, chamar de uma dialética suplementar do fragmento. A exigência de Blanchot era o seu guia. O texto de Blanchot o interrompeu. Eu o cito:


O fragmento, enquanto fragmentos, tende a dissolver a totalidade que ele supõe e que ele carrega rumo à dissolução de onde ele não se forma (propriamente falando), à qual ele se expõe para, desaparecendo, e, com ele, toda identidade, se manter como energia de desaparecer […]


*

Uma dialética suplementar do fragmento estava, portanto, lá também em obra. Talvez não seja equivocado nomeá-la uma dialética negativa, e não se buscarão com erro secretas correspondências entre Blanchot e Adorno. Mas isso quer assim mesmo dizer que a dialética – o discurso – é indestrutível. Noli me frangere, ela ordena em todo texto, e no texto fragmentário também, e no discurso em fragmentos sobre o fragmento. Não me quebres, não me fragmentes.


*

Não é somente o efeito de uma vontade de se proteger. Não mais do que o Noli me tangere da Escritura. Não me toques, diz o Cristo ressuscitado, porque tu não o poderias, porque tu não saberias aquilo que tu tocas, e porque tu crerias sabê-lo. Tu não podes nada saber nem nada querer daquilo a que se dá o nome de um corpo glorioso.

Não podemos, sobretudo, acreditar que pudéssemos saber fragmentar. Que pudéssemos conhecer nisso em fragmentos. E que pudéssemos fragmentar. Ninguém fragmenta, senão talvez esse Noli me frangere que toda escritura pronuncia: não me fragmentes, não queiras me fragmentar – isso se fragmenta e isso me fragmenta bastante, não está à medida de tua decisão.


*

Tudo isso está escrito na escritura fragmentária de Blanchot. Não há nada a acrescentar, nada a cortar. Nada a dialetizar, nada a fragmentar. Sobretudo, não cair na armadilha dupla da sobredialetização e da sobrefragmentação. Blanchot suporta até o extenuamento – até não mais suportá-la – a exigência arriscada de escrever justamente entre essas duas armadilhas gêmeas. Assim, sua escrita também (e não somente seu discurso) declara: Noli me frangere. Não quebres minha insistência e meu murmúrio. Tu não tocarias mais no fragmento: ele já precedeu teu gesto e o meu, e os seguirá sempre.


*

Não fales, não escrevas do fragmento. Ou tão pouco.


*

Para terminar, é o fragmento (os fragmentos, a exigência fragmentária) que diz Noli me frangere. Não preservando por aí nenhum átomo puro, nenhuma obra indivisível – mas sem relação, bem simplesmente, com nenhuma operação, em nenhum sentido. O fragmento é indestrutível, quer dizer, a destruição é assegurada, e essa segurança não é uma segurança – em todo caso não é uma segurança por nenhum saber, por nenhum sujeito.


*

Alguém escreve, alguém lê, alguns falam, isso toma forma, isso faz sentido, isso se acaba em obra ou em fragmentos; em obra quer dizer em fragmentos. Por esse ato, é indestrutível: uma conversação tanto quanto um poema. O que é indestrutível é a fragilidade mesma, mais miúda, mais tremente, mais insustentável que qualquer fragmentação. A fragilidade que há no tomar a palavra ou no escrever. No abrir a boca, no traçar uma palavra. Está aí, é então que isso se quebra – em nenhuma parte alhures, em nenhum outro tempo. A fragilidade de um corpo glorioso (nem transcendente nem imanente, nem teu nem meu, nem corpo nem alma) quebra uma garganta ou uma mão. Eleva-se uma palavra, um discurso, um canto, uma escritura. O corpo glorioso não cessará de neles repetir essa ordem tão frágil como uma imploração: Noli me frangere.

Jean Luc Nancy



                                                    Imagens de Giselda Leirner  -  http://www.giseldaleirner.com/site02.htm



Nenhum comentário:

Postar um comentário